...quase morri sem ver o mar

Todos o chamavam de Lateral, mas o seu nome era João Pedro. Há algum tempo na instituição João tinha certas singularidades. Perdera toda a noção de identidade, havia esquecido o passado e balbuciava palavras sem sentido para os demais... e se um dos demais fosse o Argemiro, o auxiliar da enfermaria, a coisa não ficava fácil.

Argemiro, um nordestino de cabeça chata, tinha alma de cangaceiro e ruim como o demônio. Uma pessoa inteiramente desqualificada para a tarefa que exercia – cuidar de doentes mentais – no entanto, alguém de influência lhe arrumara o emprego e ali foi ficando. Fazia as tarefas simples de faxina e lavanderia, além do encargo de levar os internos para o café da manhã.
- Como é Lateral, olha o café aí...!
- ...o mar ...o mar, balbuciava o Lateral.
- Vamo logo Lateral, chega de moleza!
- ...o mar ...o mar.
- Vamo aiiií, Lateral!!!
Custava um pouco para pegar, mas depois que engrenava o Lateral vinha bem. No corredor seguia murmurando seu mantra particular: ...o mar ...o mar ...o mar ...o mar...

Apesar de sua excentricidade, Lateral era uma figura querida. O seu apelido nada tinha haver com a posição consagrada por Nilton Santos, devia-se ao seu jeito peculiar de ser. Estava na lateral da realidade, transitando em uma área periférica de difícil acesso e compreensão. Embora em uma instituição psiquiátrica a excentricidade seja a regra, o Lateral extrapolava um pouco o padrão; e a diferença se fazia notar. O único a lhe respeitar era o Dr. Luiz Paulo Monteiro e Silva, o diretor da instituição. Atento a detalhes e minúcias o Dr. Monteiro só lhe chamava por João Pedro no esforço de resgatar a subjetividade do brilhante engenheiro da Petrobrás. Com a paciência de um chinês preso, dispensava uma atenção toda especial para o João – um caso digno de constar nos anais da psiquiatria.

João Pedro foi daquelas poucas pessoas que provaram o gosto da felicidade intensa. Com dois ótimos filhos constituía com a mulher um dos casais mais bem ajustados. Solange, sua mulher, além de linda e encantadora era conceituada socióloga bastante conhecida pela sua atuação em projetos sociais. Tudo corria bem até o fatídico dia. Comemoravam os vinte e seis anos de casados no restaurante onde iniciaram o namoro, e como convinha à ocasião – um jantar a dois. Na saída foram abordados por um moleque de no máximo quinze anos.
- Olha aí, doutô... é cinco real.
- Mas eu já paguei ao guardador, disse João enquanto abria a porta do carro.
No instante seguinte o pivete de olhar esbugalhado saca um 38 e descarrega todo o ódio em uma rajada no rosto de Solange. A face é transfigurada em segundos... o maxilar salta fora... o sangue jorra no rosto de João... e Solange tomba inerte. João estupefato não podia crer no que via e quando chega o socorro estava mudo e distante... muito distante. Era tarde... a sua mente se transformaria para sempre.

Nesse estado de catatonia total o Dr. Monteiro o vislumbra pela primeira vez. A internação foi a única solução possível para a família, não havia alternativas. Desde o primeiro momento Dr. Monteiro percebe que o novo interno demandaria um tratamento diferenciado. Durante algum tempo em estado de choque, João não disse uma só palavra,  o que lhe valeu o apelido de Lateral. Em certo dia descobre uma inscrição no muro do pátio – QUASE MORRI SEM VER O MAR. Fica intrigado. A partir daquele momento, anda pelos corredores murmurando: ...o mar ...o mar ...o mar. Apesar do estranho o Dr. Monteiro achou o fato positivo, era o primeiro objeto fora de si-mesmo que despertara alguma reação no Lateral. Deveria ter algum significado... mas qual???

A mudança aparentemente pequena fez a diferença. Alem do monótono discurso, Lateral trocava algumas palavras com os outros internos. Tem início um lento e expressivo processo de socialização. Através dos mais antigos descobre que o autor da frase era o Amauri, um interno com o desejo enorme em conhecer a praia. Obviamente o Lateral ficou curioso, mas Amauri já tinha saído da instituição. A descoberta o induz a alterar o seu mantra: ...amauri ...amauri ...amauri. O repertório se amplia, conservando, no entanto a mesma monotonia: ...amauri ...amauri ...amauri. O Dr. Monteiro tem um palpite e muda o enfoque. Amauri, o mar e a frase do muro poderiam se constituir em uma ponte para realidade e assim começa a explorar esses objetos nos seus atendimentos. Dá uma ordem expressa a todos os funcionários para que tratem o interno somente por João Pedro, precisava resgatar a identidade daquele pobre homem. Perde a esportiva com Argemiro, que apesar das recomendações insistia em chamá-lo de Lateral. E só depois de ouvir muito desaforo do diretor, o tacanho nordestino entende as ordens. Com atendimentos diários João era especial. O tratamento lento e muito cuidadoso esboçava poucos resultados. Um desafio para o Dr. Monteiro.

Em uma segunda-feira de céu limpo e sol radiante, o Dr. Monteiro é mais ousado. Decide contar para o João Pedro toda a história de Amauri esclarecendo mistérios que porventura houvesse.
- Pois é João, você sempre esteve muito curioso acerca do Amauri... não é?
- É....
- Então... o Amauri esteve internado aqui por algum tempo, e saiu novinho em folha. Veio para cá direto do interior de Minas. Nunca havia visto o mar e por isso tinha um desejo enorme em ir à praia.
- É...
O Dr. Monteiro dá uma pequena pausa, acende um cigarro e prossegue calmamente.
- João... como eu ia dizendo, o desejo do Amauri em conhecer a praia era enorme, então achei por bem levá-lo pessoalmente à Copacabana.
- ...e ...e ele gostou?
- Nossa...! ele adorou. Foi quando escreveu aquela frase no muro. Depois passei a levar regularmente à praia e aos poucos ele foi melhorando bastante.
- e... e aí?
- E aí ele ficou muito legal, pouco tempo depois teve alta e voltou para Minas, voltou para casa da família.
 - ...legal!
- Legal mesmo. E desse modo eu espero que em breve você esteja de volta a sua casa.
A sessão teve um efeito extraordinário, pois a partir daquela dia o João Pedro melhorou sensivelmente. Retornava para estranheza do mundo real: a suposta realidade que a maioria convenciona como tal.

A sós em seu consultório, o Dr. Monteiro revia e relia as anotações do caso João Pedro. De início a incomunicabilidade criou uma barreira intransponível indicando uma viagem sem retorno. Encarcerado em seu próprio eu, em decorrência do trauma psicotisante, João busca uma defesa contra o externo ameaçador: o terror sem nome. O momento de transição ocorre ao perceber na figura de Amauri um objeto transicional, um objeto de apego no qual o João projetava os seus temores, suas ânsias, suas tristezas e sua esperança em voltar à realidade. Os objetos internos são espelhos da realidade e trabalhar o objeto Amauri foi uma forma oblíqua de romper a couraça impenetrável que havia criado. Com a elaboraração o conflito, o resultado superou a expectativa permitindo uma drástica redução dos medicamentos. Manteve apenas o antidepressivo e liberou os fins de semana para ficar com os filhos.

Já se passavam quatro meses desde que João Pedro recebera alta. Morava com o filho mais moço, o filho solteiro, e a sua rotina na Petrobrás voltava à normalidade. Tinha agendado, para a semana seguinte, uma visita à P-52 na bacia de Campos quando vai ao consultório do Dr. Monteiro. Apesar da alta mantinha uma rotina de atendimentos quinzenais dando prosseguimento ao tratamento, mas no trajeto do consultório encontra Argemiro no corredor.
- Como é Argemiro! Tudo bem!
- Tudo bem graças a Deus.
- Pois é... sempre volto para ver os amigos.
- É isso aí!
- O Amauri que foi para Minas é que nunca mais voltou.
- Ih... o Amauri não foi para Minas não senhor.
- Foi para onde???
- O Amauri morreu... num sabia?
- Não... coitado... como foi?
- Ué... pensei que o senhor sabia...
- Não...!
- É... ele fugiu daqui pra ir pra praia como fazia as vezes e aí teve uma vez que morreu afogado.
- Ele morreu afogado???
- Morreu né...! Mortinho da silva; foi falá com o Zé Maria.
- ................................................???
- O que foi seu João?....... tá passando bem?
- ...o mar ...o mar ...o mar... , murmurou o Lateral.

Richard

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