Um homem que gostava da Audrey Hepburn


Ele gostava da Audrey Hepburn... Assim, Cecília definiu para si mesma aquele sujeito, que a encantou no começo de sua maturidade.  Para ela, havia mais do que delicadeza num homem gostar de Audrey.  Talvez seu toque másculo e também delicado tenha impregnado Cecília com a deliciosa sensação de ter conhecido algo sedutor, elegante e terno nas sombras do masculino.  Sombras sutis num mundo de escuros, de vazios e de luzes fracas.

Por que Cecília tinha voltado a pensar nele depois de tanto tempo? Foi só assistir novamente Bonequinha de Luxo...  A lembrança daquele homem parecia invadi-la sem cerimônia.  Com uma força que ela preferia não ter revivido.

Ao ouvir a elegante e delicada Audrey cantando Moon River, era evidente que Cecília tinha lembrado daquele homem... Havia tanta fragilidade naquela cena... A personagem deixava de ser uma Bonequinha de Luxo, e no peitoril da janela, surgia uma moça simples, de jeans, de sonhos e de perdas. Ela cantava para o nada, para algo muito terno...  Imperceptível. Cecília parecia recordar aquele sujeito que gostava da Audrey Hepburn.  Deu um suspiro, quase um gemido. Fechou os olhos.  Talvez voltasse a ser uma menina outra vez... Numa uma época em que ele ainda não tinha rosto.

Desde pequena, Cecilia sonhava em encontrar um homem diferente. Que gostasse da Audrey.  A sensação de que ele poderia existir era percebida por imagens internas que povoavam sua infância. Imagens sem data, de dentro, de sempre. Inexplicáveis marcas de nascença. Ela tinha nascido assim, com uma parte doce deslocada; que talvez desabrochasse com o toque delicado de um homem que gostasse de Audrey Hepburn... Era tudo uma questão de delicadeza e ao mesmo tempo; uma questão delicada.

Cecília buscou por aquele homem por cantos e desencantos.  Buscou... Teve esperança de vê-lo na finura de gestos e no carinho de suaves tipos masculinos. Viu meninos.  Olhou também para alguns sujeitos cheios de testosterona com suas ensaiadas elegâncias ou vulgares rudezas. Viu máscaras.

Com o tempo, Cecília resolveu amadurecer e esqueceu a estória de Audrey. Parou de procurar por aquele homem. Deixou-se esconder na penumbra do esquecimento do quão doce seria encontrar-se junto a uma sutil alma masculina.  Construiu sua vida.

Percebia-se que Cecília tinha voltado de sua viagem à infância. Abriu os olhos.  Sorriu.  Endireitou-se na poltrona e recomeçou a assistir o filme. Parecia estar focada em si mesma, mas ainda continuava no passado.  Oito anos atrás?  Quase certo! Madura e bonita.  Elegante, bem vestida, educada.  Tratada. Toda uma vida planejada, certa e limpa. Uma estória pavimentada no cinza, na mesmice e na falta de cor.  

Pouco se sabe sobre aquela época. Naquele tempo, Cecília foi passar férias num hotel. Desses com uma sala acolhedora onde os hóspedes conversam. Fácil imaginar sua conversa com alguns deles. Uma fala acostumada à formalidade e educação. Um hóspede lembrou que o hotel tinha uma coleção de filmes.  Por que não assistirem a um? Boa idéia!  Seria difícil decidir qual... Tantos palpites... No meio da confusão, atrás de Cecília, uma voz masculina falou:  - A Princesa e o Plebeu. É com Audrey Hepburn e Gregory Peck.  É antigo, mas filme com Audrey não fica velho...

Nenhum conhecido de Cecília viu a cena. Mas quem a conhece, sabe que ela não pode resistir à emoção de olhar profundamente para o homem que gostava de Audrey! Ela nunca descreveu como o sujeito era. Pode-se jurar que ele era moreno, maduro, cool e sedutor.  Grisalho e com traços de beleza.

O homem só pode ter olhado para ela com interesse. Impossível ser indiferente ao olhar de Cecília. Fácil é imaginar seus olhos cobertos de encantamento. Como se ela  acabasse de renascer. Olhos ofuscados por um excesso de luz;  incompreensível para ele. Aquela mulher estava renascendo num olhar... Voltou a viver a partir do toque de algo inesperado; delicado e terno.

Pouco se conhece sobre aquele homem que gostava de Audrey Hepburn... Cecília tem evitado esse assunto. Ela apenas contou que o sujeito correspondeu ao seu olhar. Sorriu para ela. Não o viu mais naquele dia, mas acabaram por se reencontrar tempos depois e se envolveram. Ela se envolveu profundamente. Tudo era elegante naquele homem. Tudo a atraia  Era um sedutor.  Por ele, Cecilia passou a sonhar como uma menina. Uma menina cega.

O homem que gostava de Audrey tratava Cecília com carinho e educação. Não queria se envolver. Disse para ela não se envolver. Já tinha sofrido muito. Aos olhos daquela mulher, ele era delicado, terno, sedutor e melancólico. Sua ternura, delicadeza, sedução e melancolia comoveram Cecília.

Não teve jeito, Cecília se envolvia cada vez mais com o sujeito. E ele começou a se esquivar. Ela não enxergava. Não enxergava…. Ele continuava a tratá-la com suavidade e não rejeitava sua companhia. Aquela mulher já era intima de sua família. Seus filhos, seus netos, sua mãe e irmãos. Todos a conheciam…  Até uma empregada antiga.

Mas o homem foi se esquivando, se esquivando. Nasceu sua primeira netinha... A mãe era a filha mais nova do sujeito.  Ele, delicado e terno, só tinha olhos para a criança. Cecília tudo compreendia... O movimento da família junto ao bebezinho. A presença e atenção da ex-mulher perto da criança.  Que bom, que ela tinha voltado e tentava ser uma boa avó... Ficava feliz porque tudo caminhava bem...  Ele merecia. O homem que amava Audrey precisava ser feliz.

Como Cecília tinha classe... Todos diziam para aquele homem... O sujeito, embora esquivo, parecia valorizar a presença equilibrada daquela bela mulher dentro de sua vida.  Num gesto de confiança, um dia ele a levou para conhecer o ex-sogro. Uma pessoa simpática que a recebeu como uma amiga e só fez elogios ao bom gosto do ex-genro.   Que belo exemplar feminino ele tinha conseguido!

Ela estava nas nuvens... Mas o homem continuava a se esquivar.  Isso era incompreensível para ela. Precisava enxergar. Precisava... A empregada do tal sujeito se encarregou disso. Insinuou alguma coisa sobre a ex-mulher e o patrão.  E finalmente Cecília começou a enxergar...

Quis esclarecer a situação, sem acreditar porque aquele homem não fora sincero com ela. Dificil imaginar que depois de muito tempo sua ex-mulher ainda mexia com ele. Depois de tanto abandono e sofrimento.

O homem que amava Audrey Hepburn estava feliz.  Radiante. Inexplicavelmente feliz. Com algum prazer desconhecido por ela.
- Não Cecilia, eu disse para voce não se envolver comigo, falou, quando ela foi procurá-lo. Eu disse que tinha sofrido. Eu disse que era complicado…

Cecilia arguentou que ele e a ex-mulher estavam separados há muito tempo… O homem, aquele homem na sua felicidade alucinada e irracional disse para ela - Voce não sabe, mas eu terminei meu terceiro casamento por causa daquela mulher… Não ve? Quando aparece algum namorado na vida dela, eu entro. Se eu arrumo alguém que vale a pena, ela volta a aparecer na minha vida… Eu disse que era uma complicação… Saiu. Sem delicadeza, sem ternura e sem suavidade.  Deixou Cecilia sozinha.

Nunca mais ela voltou a ver aquele homem. Mas aquela mulher sofreu. E entendeu tudo…A familia, o ex-sogro, a delicadeza, a suavidade, a ternura. Todo jogo de sedução. Foi usada como isca…

De repente, Cecilia interrompeu sua volta ao passado. Não estava mais focada em si mesma. O filme já tinha acabado… Ela caminhou em minha direção. Eu estava sentado e tinha observado aquela mulher o tempo todo enquanto ela via Bonequinha de Luxo.

Cecilia deitou sua cabeça suavemente no meu colo e disse: - Jairo, voce sabe que eu te amo muito. Não sabe? Eu estava emocionado. Afaguei seus cabelos – E voce, querida, já sabe que ele não gostava de  Audrey Hepburn…?

Clicia

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