Quase morri sem ver o mar

Toda vida me orgulhei de ser nascido e criado em Minas Gerais. Jamais tive sequer a vontade de sair de minha cidade natal, Barbacena. Tudo no local sempre caiu bem em mim, as pessoas, o ambiente, a comida... mas aos meus 78 anos percebi que a cidade estava modernizada demais.

Passei grande parte da minha vida cultivando rosas nos Campos das Vertentes e não tinha grandes ambições. Sempre fui feliz acordando cedo e indo para a lida cuidar das minhas plantinhas. É claro que me casei, tive filhos e depois netos, pois as pessoas são parte importante da minha vida.

Mas agora estava ficando cansado dessa correria da modernidade. Meus netos só pensavam em jogar o tal do “vídeo game” e ficar grudados naqueles computadores. Não sabem e nem querem aprender a ver a beleza que é o botão virar flor, a magia da natureza. Isso a cada dia me deixava mais magoado.

Era mais um dia como os outros. Acordei com o cantar do galo, e o barulho dos carros na estrada que foi construída próxima a minha casa há alguns anos. “Saudades da paz no campo de antigamente!”, pensei já desanimado com o dia que começava.

Levantei-me, fui ao pequeno galinheiro e apanhei alguns ovos para o café da manhã. Chegando à cozinha encontrei minha esposa, Gumercinda, já a postos no fogão coando o café e fui surpreendido por um pedido dela:
- Bom dia, meu velho. – disse meio cabisbaixa. –Você me faria um favor?
- Já busquei os ovos, nem precisa pedir. – a atropelei acostumado com as tarefas do dia a dia.
- Não, não era isso. É um pedido encarecido de uma mulher que está ao seu lado há 60 anos... Me leva para ver o mar?
- O mar? – fiquei confuso, já estava ela bagunçando todo o meu dia.
– Mas por que o mar? Agora, depois de todos esses anos? Nunca falou isso antes!
- Ora, Orlando! – comecei a ver aquela braveza que conhecia bem em seu olhar. – Eu só não quero morrer sem ver o mar, sem saber como é!
- Diacho! Você já sabe bem como é? Essas novelas da televisão só fazem mostrar o mar. Ontem mesmo estava - fui interrompido bruscamente.
- E desde quando ver na TV é a mesma coisa? – estava irada agora. – Dá para fazer a vontade da sua esposa pelo menos dessa vez? Já estou velha. Deve me faltar pouco tempo. Não quero morrer sem ver o mar!

Suspirei profundamente, não gostava dessa estória de que estávamos velhos e tínhamos pouco tempo de vida. Entretanto, teria que realizar esse pedido dela. Gumercinda sempre foi a melhor esposa do mundo. Cuidando bem de mim, dos nossos filhos e ainda me ajudando todos os dias no roseiral. Não poderia negar esse desejo. O que a gente não faz por amor?

-Que tal no final de semana? – agora meu tom era de derrota. -Tenho que revisar o velho Chevette. Ele nunca foi para tão longe.
 “Nem eu” – pensei.
- Para mim está ótimo! – de repente toda a braveza foi embora e o sorriso apareceu. - Assim combino com o Zezinho para ficar olhando as flores.

Deixei os ovos na pia e sai mal humorado. Eu não precisava ver mar nenhum! Não queria sair da cidade, dirigir horas e horas por um motivo tão besta. Nem sabia direito o caminho. Nunca antes tinha saído das minhas Minas Gerais. Mas como manda quem pode e obedece quem deve... lá fui eu assuntar com todos meus amigos na praça para aprender como ir. Todos disseram que era uma loucura com a nossa idade viajarmos para tão longe, mas eu não podia me levar por isso. Estava ótimo e não suportava essas barreiras que todos impunham com a questão da idade!

Após longos preparativos, brigas com os filhos que queriam vir conosco e ouvir caminhos e estradas que a minha memória não permitia mais que gravasse saímos no sábado pela manhã.

A viagem não foi nada fácil. Após duas horas paramos para almoçar e esticar os ossos. Não tínhamos mais disposição para ficar chacoalhando tanto tempo no carro. Talvez as pessoas tivessem razão, mas não daria o braço a torcer.

Mais duas horas e estávamos percorrendo a famosa Avenida Atlântica. Podia ver o infinito azul longe, assim como as areias esbranquiçadas. Logo tratei de arranjar um local para estacionar o Chevette preto e caminhamos até a praia. Percebi que Gumercinda estava ansiosa, as mãos suavam e tremiam levemente entre as minhas.

Quando pisamos à areia meu coração acelerou. Suspirei fundo e não pude evitar as lágrimas teimosas que vieram borrar minha visão. Parecia que agora eu estava dentro da televisão. A sensação da areia sob os meus pés não se assemelhava em nada com o pisar na terra do plantio das rosas. A areia era granulada, grossa, rústica, mas ao mesmo tempo refrescante.

Caminhamos lentamente até a beira d’água e ficamos ali, um tempo infinito, que não sei precisar, parados, admirados, observando o vai e vem das ondas. Eu realmente poderia passar dias ali, apenas vendo como Deus trabalhava na perfeição do mundo e da natureza. Da mesma forma que o botão se abria em flor o mar ia e vinha, comandado por algo maior.

Pelo jeito só eu poderia ficar apenas observando, pois minha esposa logo ergueu seu vestido até os joelhos e tratou de colocar os pés na água. Ela sorriu, olhou para mim e fez um gesto para que me aproximasse. Desconfiado fui andando pé ante pé até ficar próximo a ela. Foi quando a onda se aproximou e pude senti-la na minha pele. A sensação foi maravilhosa. O frescor da água levava todo o cansaço daqueles pés idosos que haviam dirigido por horas a fio. Sorri para ela e falei a primeira palavra desde que havíamos chegado à avenida.
- Obrigada, meu amor. – levei minha mão direita à bochecha dela e acariciei delicadamente. –Quase morri sem ver o mar, mas graças a você isso não aconteceu.
- De nada, meu velho teimoso. Sabia que você também gostaria de ver. – ela sorriu e colocou a mão por sobre a minha, em seu rosto. –Te conheço como a palma da minha mão.

Passamos o restante do dia na praia e conhecendo um pouco da ‘cidade maravilhosa’. Após um lindo pôr do sol fomos para um hotel, já que não conseguiríamos viajar de volta hoje. Um cansaço enorme se abateu sobre mim e resolvi deitar para descansar. Minha esposa deitou-se ao meu lado e fiquei grato por tantos anos de companhia.
- Eu te amo. – disse pela primeira vez.
- Eu sei, também te amo. – ela respondeu com brilho nos olhos.

Logo dormimos. Meu sono era profundo, sem sonhos. Não mais acordei.

Vivian

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