O Craque Desequilibra

O tiro saiu certeiro. “Gol”, sussurrou Miro para ninguém. Curioso seu impulso de não querer ser ouvido, estando apenas ele e o recentíssimo defunto, tanto mais quanto quebrado o silêncio já havia sido pelo estampido de seu trinta e oito ecoando naquele galpão abandonado. Talvez fosse vergonha. Pensar em futebol ao tirar a vida de alguém parecia desrespeitoso. Ainda que matar possa não ser considerado propriamente nobre, mas matar era ofício. E Miro era um profissional. Isso se via no buraco aberto no peito do infeliz ali estirado. Praticamente no coração. Fazer igual não era para qualquer um.

Quase dez minutos e Miro já devia estar bem longe dali, mas o desenho que a poça de sangue ia fazendo no chão o entretinha. Quase o hipnotizava. Muito, muito sangue. Sangue... parecia já ouvir a multidão ao seu redor gritando “sangue, sangue!”, e o lamaçal vermelho a seus pés tingia agora todo o Maracanã, misturado a milhares de camisas encarnadas e ao tremular de véus gigantescos trazendo a insígnia do América Football Club, e jogadores comemoravam delirantemente, junto com a torcida, uma vitória apoteótica. Cerrou o punho da mão que não segurava o revólver. Quis gritar um palavrão, mas virou e foi embora. Desde a classificação para a final do campeonato que almoçava e jantava América. Porém, até então não havia se dado conta de estar tão tomado, tão vencido em pensamento. Logo ele, que era todo gatilho e obstinação na hora de fazer os serviços, perdeu-se em veleidades futebolísticas. Sempre acreditou não gostar de futebol. Mas a verdade hibernada acordava agora, mais de vinte anos depois do seu time voltar a disputar uma final. De fato, não era de futebol que gostava. Era do América. Porque ao contrário do que o mundo crê, futebol não é jogo, nem bola ou gol. Futebol é a auto-afirmação do ser humano e nada mais. Ainda que perante todo o submundo da Baixada Fluminense Miro fosse tido como o melhor naquilo que fazia, faltava-lhe algo. Que não viria da profissão, da conquista da mulher impossível ou da loteria. O Olimpo da natureza humana só o futebol é capaz de conceder.

Sabia de antemão que haveria mais um serviço para aquela semana. Geralmente as ordens vinham a varejo, chegando somente após a última missão terminada. Mas os tais deuses do futebol certamente intervieram, fazendo com que nenhum desmando de última hora rondasse o seu domingo de Maracanã. Pôde planejar seus afazeres de modo que estivesse livre para a arquibancada de América versus Botafogo.

A bola da vez era Deomir. Morava no Engenho Novo, trabalhava aos sábados, ia de trem. Tinha cinqüenta e nove anos, vivia sozinho, enfim, presa fácil. Na estação do Engenho Novo, Miro esperava o desembarque da vítima há mais de uma hora. Tempo em que o time do América dera cerca de quarenta voltas olímpicas no vasto gramado de sua cabeça, circundando o campo qual ponteiros de relógio que avançavam sem fazer a hora passar. Centenas de pessoas já haviam saído da estação, menos Deomir. Teria certeza? Não deixara o alvo escapar durante os fantásticos lances da final que sua mente teimava em exibir de véspera? Não alguém de seu gabarito, pensou ao enxugar a testa. Uma nova leva de pessoas surgia. Olhava tenso a aglomeração quando, por um segundo, gelou. Alguém pareceu familiar. Parou, aprumou a vista e comprovou: sim, finalmente, era Deomir! Porém, um Deomir imponderável, inconcebível à existência. Em carne e osso, lá estava ele. Deomir, dentro de uma esplendorosa camisa do América.

Seguir a presa até em casa foi penoso para Miro, cuja boca não fechava mais. Até gaguejou no momento de surpreender Deomir à porta. Com a arma, ordenou silêncio, fingiu firmeza, mandou que entrasse. Mas ao pisar na sala, o bravo matador quis chorar. Um nó na garganta que não sentiu por nenhuma das vinte e sete vidas que tirou. Pôsteres, souvenirs, almofadas vermelhas ostentando escudos de crochê, a casa de Deomir era um verdadeiro relicário do América. As pernas de Miro falsearam. Basbaque, sentiu o morador suplicar qualquer coisa a seu lado, mas estava surdo. Amarrou e amordaçou Deomir, mecanicamente, sem encará-lo. Compartilhava com este cada frustração no futebol. Seria capaz de detalhar as tantas vezes que o morador humilhou-se por aquela camisa rubra. Definitivamente, o que seu peito dizia não combinava nada com a tarefa que precisava realizar. A arma nunca lhe pesou tanto. Abandonou Deomir. Era véspera do jogo, mas foi direto ao estádio. Passou a madrugada diante do portão principal, com tudo o que havia de vermelho em Deomir a pesar-lhe a cabeça. Foi o primeiro a entrar na Maracanã, o primeiro a sentar-se e talvez o último a notar a arquibancada lotada a seu redor. Acalentara aquele momento por anos, mas agora desperdiçava-o. Perdia-o no vácuo aberto pelo conflito de suas próprias emoções. Assustou-se quando a massa levantou-se de uma só vez a seu lado. Gol! Uma alegria nuclear. Choros, berros e abraços. Gol do América! “Gol”, sussurrou Miro para ninguém. Levantou-se, não pelo furor, mas pela ânsia de sumir. Pulou cadeiras, desvencilhou-se de milhares de corpos em êxtase, sem saber se estava feliz ou não. Queria pegar o trem e chegar até Deomir. Como pôde não ter, ao menos, deixado a televisão ligada para Deomir? A culpa o destruía. Mais ainda ao chegar à casa do pobre diabo e ver o corpo atado, agora frio e imóvel. Talvez por enfarte, pela agonia fulminante de ouvir gritos de gol sem saber de quem, por uma espera angustiante e infinita que acabara não dando em nada, Deomir estava morto. Tão sem vida quanto Miro naquele exato instante.

Leo João

Um comentário:

  1. OLÁ,

    MEU NEGÓCIO É HUMOR!

    ENTENDA PORQUE A MULHER, ESTA SEMANA GANHOU DESTAQUE ESPECIAL NO MEU BLOG :

    “HUMOR EM TEXTO”.

    “E COMPREENDA PORQUE O FUTURO SERÁ BEM MELHOR E A SABEDORIA E A CERTEZA DO VELHO DITADO:

    ”É DANDO QUE RECEBEMOS”, AQUI SE APLICA COMO NUNCA!

    É UMA CRÔNICA DE HUMOR, SOBRE O MAIS IMPORTANTE DOS RELACIONAMENTOS HUMANOS QUE PODEM SER OBSERVADOS.

    E ISTO, SEM PALAVRAS CHULAS OU PORNOGRAFIA, POIS SOMOS UMA IMENSA FAMILIA DE SEGUIDORES O QUE VOCÊ IRÁ COMPROVAR FACILMENTE.

    ESTOU ESPERANDO PELA SUA VISITA E PRINCIPALMENTE, PELO SEU COMENTÁRIO QUE É O MAIS IMPORTANTE.

    UM ABRAÇÃO CARIOCA.

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