De repente

- Conto-lhes um causo cantado que se sucedeu num outono passado. Eram dois repentistas: ele, João do Refrão; ela, Rita da Rima Bonita. Ele: de chapéu de palha, bigode tão fino, barbicha e sandálias. Ela: de vestido de chita e cintura marcada por laço de fita. Espreitavam-se nas praças, nas feiras, nos coretos. Fosse dia de missa ou fosse de torneio. Ela, de longe, o assistia a desafiar quem ousasse dizer poesia. Ele também espiava a moça de duas violas, e, se fosse surpreendido, fingia-se distraído: rabo-de-olho corrigido em assobio.

Até que se encontraram, por um acaso um tanto premeditado (o feito tinha dedo do prefeito, que era primo do rapaz). O cartaz, de dizeres pomposos em letras azuis, convidava o povo para a festa de rimas no São João da vila e anunciava a esperada atração: o do Refrão versus a Rita!

Era chegado o dia! Bandeirolas estendidas por toda a avenida. Multidão de sentimentos. Acordeom. Sanfona preferida que infla, sustenida, seus foles no pulmão. Arrepio na pele e quentão!

Rita e João chegaram a tempo. No peito, disparada percussão e um ardido e alado balão - pronto para voar vida afora e atirar-se céu adentro.

Esperava-se que o moço, bem-apessoado e galante, comandasse o início da trova e a viola trinasse num instante. Mas o sangue lhe subia às faces e lhe faltava às pernas; suava feito um porco a caminho do matadouro, e mantinha-se mudo, enquanto a multidão gritava: “Começa!”

Pra não se fazer de rogado, o rapaz, que já tanto havia praticado, emendou uma rima inspirado nos enfeites da menina. Citou o vestido rendado, pregueado, bordado e rodado. O cabelo de tranças cheias comparou-os com duas correias.  E cadeados. Não esperava o resultado.  O povoado, acostumado a casamento na roça em anedotas, julgou ter entendido o recado. Os homens fugidios e os arrependidos recém-casados uma gargalhada sem fim entoaram. João do Refrão, agora pavão animado, seguiu a fazer piada de sua bem-amada.

A moça de nada gostou. E alguém gritou que ela estava era irRITAda. Novas gargalhadas. Vendo seu olhar já marejado, o rapaz, desesperado, queria voltar atrás. Como fazê-la perceber que, encantado, sentiu-se encabulado porque lhe era tão linda, e que não lhe parecia uma planta natalina?

Mas, da Rita, era a vez. Não demorou um minuto, nem três. Saiu-lhe feito cuspido e desandou a vomitar palavras de duplo-sentido:

- Mas que língua tão ferina,
tão hábil, enquanto dribla.
Com requinte de ironia
A minha palavra amiga.
Tão ágil, samurai, esse seu sabre de araque.
rasga, rosna, canta e corta
a palavra de quem te gosta

Imagina em outra arena,
Não na quadra do poema.
Não na fábrica de rima.
Dessa terra outra trincheira,
outra briga verdadeira,
outra guerra nessa vida...

Seriam fortes outras línguas
que se esmerassem em esgrima?
Outra lâmina seria assim tão maldita?
Me diga você...
Dito assim, ponto pra mim.
Se não me engano, essa partida, eu ganho.
Touché!

Salvas de palmas para a Rita - que ganhou prêmio e apelido de Rita da Boca Maldita. O romance prometido ficou, assim, pra sempre suspendido. Nunca mais, ele teria coragem de abordá-la, o rapaz.

À Rita, envaidecida (embora dissimulasse que estivesse no fundo sentida), questionavam se não estava arrependida do que fez.

- Não. Só que amanhã não sei o que poderei fazer para escrever um poema tão bom... Outra vez.

Liliane

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