Maria defendia que uma máquina fotográfica bem intencionada era protegida pelo véu da invisibilidade. Carlo detestava seu hábito recém adquirido de tirar fotos de desconhecidos. São partes de mim que reconheço, ela dizia serelepe enquanto clicava tão contente que sua alegria não a deixaria ver o desagrado alheio caso alguém não gostasse de ser flagrado pela lente de um estranho. Já escurecia quando os dois saíram da loja de roupa de cama com travesseiros novos. Maria sacou a câmera da bolsa, Carlo tentou argumentar que a pouca luz não deixaria que as fotos ficassem boas. Maria disse que não tinha problema, resolvia com o iso. Iso? Ele não chegou a perguntar. Tinha aprendido logo nos primeiros meses ao lado dela que quando queria algo, nenhum argumento contrário era suficiente para impedi-la. A noite está tão amarela, ela dizia enquanto tirava uma foto do bueiro. Não era um prazer que Carlo compartilhava, ele se limitava a seguir ao seu lado e a pensar nas coisas a fazer do dia seguinte enquanto Maria seguia vendo coisas que ele não via.
Foi quando Maria pegou no braço de Carlo pedindo-lhe para parar por um instante que ele pôde pressentir o perigo. Como que hipnotizada, Maria tirava uma série de fotos de um homem recostado na parede. Ele vestia um uniforme que poderia ser de um auxiliar de enfermagem ou de um fugitivo do hospício. Carlo não gostou nada do clima sombrio do homem com aquela noite deserta de domingo, pediu à Maria que fossem depressa porque tinha fome para não assumir que estava com medo. Maria continuou clicando o homem enquanto ele fazia alguns movimentos alongando o corpo ao longo da parede escura. Até que o homem levantou a cabeça e fitou-os diretamente. Sem pudor, sem timidez, o homem os encarou com tamanha certeza que seus olhos de lente pareciam absorver mais do que transparecer, mais ainda do que a câmera na mão de Maria. Maria parou de fotografar. O homem fez menção de levantar-se, Carlo segurou o braço de Maria e exigiu que eles fossem embora. Logo o homem deu meia volta e entrou por uma porta no corredor, transformando o medo de Carlo num certo embaraço.
Maria olhava as fotos metida no visor da câmera, Carlo resolveu dar uma espiada para ver o que ela tanto olhava. A foto ficou azul, ele disse surpreso, tudo era tão amarelo naquela noite. Maria sorriu da surpresa dele e atentou para os flocos brancos que voavam ao redor do homem. Carlo ficou confuso, Maria sorriu. Numa hora, ela disse, alguém deve ter jogado restos de um embrulho de presente pela janela porque caíram flocos de isopor. Carlo olhou pro chão desconfiado e confirmou os restos de isopor que se misturavam ao esgoto. Parece neve, ele disse, perdido na diferença entre o que ele tinha visto e a foto que Maria havia tirado. Maria guardou a câmera e se pendurou ao braço de Carlo, achando graça da confusão. Vamos, ela disse, também estou ficando com fome. Carlo que achava já ter fotografado todos os ângulos daquela mulher que há quase dez anos dividia o teto com ele, gostou da novidade recém instaurada. Não entendê-la completamente contanto que ela continuasse lhe mostrando flocos de neve feitos de isopor. Que continuasse pintando noites amareladas com véu azul.
Luanne.
Luanne.
(Conto escrito a partir da proposta de exercício "uma foto")
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