Crônica Interrompida

Na segunda-feira passada, por alguns momentos, quis ser a colega que mora ao lado do POP. Morar num bairro com livrarias, com um jardim botânico, numa rua simpática e calma não deve ser ruim. Deve ser ótimo. Sem contar, que o prédio da moça parece interessante e o POP é um vizinho acolhedor que combina com tudo que está a sua volta.

Peço desculpas à colega por querer roubar sua identidade, mesmo que provisoriamente. Foi um pensamento passageiro, nada profundo. É que eu moro longe do POP. Não moro mal, mas tenho que enfrentar a ponte Rio-Niterói. E enfrentá-la várias vezes por semana é um constante treinamento de paciência, de desapego a horários e de observação a respeito de seu movimento. Nela, um dia não é igual ao outro.

Na ponte, um dia não é igual ao outro. Foi isso que me fez pensar que, pelo menos para escrever uma crônica sobre a volta para minha casa, eu poderia ser mais feliz do que a colega do Jardim Botânico. Eu não precisaria caminhar dez vezes do prédio até o POP para ver se alguma coisa interessante aconteceria. Desejei sinceramente sucesso para minha colega. E sai da oficina de crônicas. Fui ao encontro do foco de minha escrita.

Eu tinha uma fonte de inspiração: a ponte às dez e meia da noite. Acompanhada por caminhões e suas frases, motoristas de ônibus cansados, gente exausta dormindo nos ônibus, acidentes e obras. Talvez eu tivesse a sorte de ver um avião pousando no aeroporto, uma noite de estrelas, uma lua linda ou as luzes de uma plataforma iluminada.

Antes de chegar a Lagoa Rodrigo de Freitas, numa rua estreita, em frente ao sinal, ele parou ao meu lado. Era um carro quatro por quatro que me deixou com a sensação de estar espremida. Eu estava espremida. Encostei um pouco junto ao meio-fio e ele abocanhou outro pedaço do asfalto. A rua é de todos; dos espaçosos e dos sem espaços, pensei. O carrão estava agora na minha frente, num ângulo obliquo. Havia uma pintura no vidro traseiro e algo escrito. Não pude ler.

A pintura era uma de onça preta e branca. Uma onça preta e branca! Isso não existe... Bem, na selva dele, deve existir. Seria vascaíno? Botafoguense? Sei lá. Vai ver é só moderno e não gosta de cor...

O sinal abriu e segui o meu trajeto de sempre até o túnel Rebouças. A onça urbana continuava na minha frente e também entrou no túnel. Tive a esperança de que ela atravessasse a ponte e eu pudesse observá-la com mais calma. Ler o que estava escrito abaixo do desenho, encoberto por um painel. Ela corria dentro daquela caverna. Grandiosa, cheia de poder num carro que não combinava com a cidade, mas era digno do que a onça dizia para mim: sou fera. Eu segui a fera da metrópole. Talvez, no fundo, quando atravessasse a ponte, ela fosse tão provinciana quanto eu.

Mas a onça não atravessou a ponte. Seguiu para Cosme Velho. E finalmente pude ler o que estava escrito no painel: CONSCIÊNCIA. A palavra se interpôs entre mim, a ponte e crônica. Seria um conto? Não pensei em mais nada ao longo do trajeto. Percebi que o tempo todo, até chegar a minha casa, eu estava ouvindo notícias do Haiti.

Clicia

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