Uma grande transformação aconteceu ao sentar-me num ônibus. O caminho, conhecido; nenhum acidente, nenhum prédio desabando. Também não houve nenhum súbito milagre com minha vista; Santa Luzia não ouviu prece nenhuma, continuo míope e com os óculos embaçados. A vida dentro e fora do ônibus - tudo absolutamente normal.
Mas meu coração mudou. Como minhas capacidades óticas continuam iguais, só pode ter sido meu coração que mudou, pois tudo o que via parecia novo. Ganhei um novo interesse pela cidade, por sua vida. O Rio deixou de ser caos, eu deixei de ser indiferente.
E, ante meus olhos, havia um boteco quase fechando, garrafas como troféus nas prateleiras - um pé sujíssimo, antiquadíssimo, a desafiar a modernidade, ali na calçada. Um velho decrépito estava sentado e o balconista chegou à porta, pitoresco, mãos na cintura, e me olhou. Parecia me desafiar: "Você aí, que nunca notou em mim! Aproveita que acordou para a vida e olha para o outro lado da rua também!" No outro lado, um entregador andava de bicicleta. Não era um entregador qualquer: era um rapaz que curtia a brisa noturna, depois de trabalhar um dia inteiro ao sol escaldante. Vi no seu rosto o prazer.
De repente, ele passou por um casal que se beijava num ponto de ônibus. Meus olhos deixam de seguir o rapaz e param nos namorados. O ônibus acelera. O beijo, o abraço, ficam para trás, mas eu não vou com o ônibus, meu coração fica. Dentro de mim, a vida fica. A cidade é mais bela e eu sou menos cega.
Sart
que texto belo!!
ResponderExcluir