A Veneza de cada um

"Cidade italiana... cidade italiana, com seis letras. Começando com V. Cidade italiana, com V". Trovejou e, num susto, Nicinha se lembrou da chuva. A caneta pulou da mão, riscou o sofá. Nicinha falou um palavrão. Ficava nervosa quando chovia. Já havia esquecido o temporal que a castigara o dia inteiro.  "Essa chuva!", pensou num muxoxo. Largou as palavras cruzadas, foi esquentar água para limpar o sofá rabiscado. Mais um trovão. Nicinha já estava alterada. Ficava nervosa quando chovia. Acreditava que sempre fora assim com chuvas e trovões, desde criança. As bolhas d'água começavam a emergir dentro da panela amassada. "Nunca gostei de chuva", mentia para si mesma ao fogão. Era sábado e queria que o telefone tocasse. Pensou em ligar para Luciene, talvez para Fátima. Queria que Júlio ligasse. "Essa chuva!". As bolhas já eram grandes e estouravam histéricas na água quando decidiu apagar o fogo. Da cozinha para a sala eram dois passos. Da sala para o banheiro, mais dois, três passos até pegar a toalhinha branca que queria. Voltou ao sofá, agachou-se, afastou as palavras cruzadas. "Cidade italiana". Molhou a toalhinha na água quente e pôs-se a esfregá-la na tinta azul. A tempestade chiava lá fora e quebrava o silêncio, mas Nicinha não ouvia. Queria abrir a porta para alguém. Queria sair. O telefone não se manifestou. Deus, como ela queria que a chuva parasse. Quando chove as pessoas costumam permanecer onde estão. Por isso todos estão lá e ela aqui. O risco virou uma mancha e ela resolveu desistir, com mais um palavrão. Sentou-se no chão e, sem largar a toalhinha, fitou com angústia a janela molhada. Em meio àquelas centenas de milhares de pingos pôde distinguir Júlio, Luciene e mais um monte de gente que poderia estar tão junta quanto eles naquele instante. Precisava de muitas pessoas ao seu lado o tempo inteiro, nunca soube o porquê. Mais um trovão. Um novo susto, dessa vez, implodindo direto em seu peito, estremecendo-a, forçando-a num tranco a se dar conta do quanto era infeliz. Agora chovia em seus olhos. Sabia que a vida cheia de amigos e bem resolvida que insistia em levar não passava mesmo de um inútil enfeite a escondê-la dos outros e de si mesma. Como um frágil e pobre embrulho de crepom cor de rosa. Nicinha ficava nervosa quando chovia, com medo da água desmanchar seu papel.

      Leonardo João

2 comentários:

  1. Valeu Leo! A sua crônica é a de número 50 do nosso blog.
    Sob forte temporal atingimos a marca significativa.

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  2. ESSA CRÔNICA É UMA OBRA-PRIMA! SONHAVA EM CONHECER VENEZA, ME PERDI EM VENEZA...MAS ESSA "DE CADA UM" É DE MATAR! E MATOU... O INDIZÍVEL!

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