Indulgências

Exatamente há cinco séculos, Martinho Lutero publicava as célebres “95 Teses” contestando dogmas e procedimentos da Igreja Católica. Desafiou abertamente a autoridade do Papa Leão X ao condenar (entre outros tópicos) o tráfico de indulgências: uma prática de uso corrente na época. O comercio do perdão divino foi a engenhosa solução de engenharia econômica encontrada pela Igreja com o propósito de arrecadar fundos para construção de catedrais. Se os pecadores foram realmente absolvidos no Purgatório não chega ser relevante, face à constatação que a secular e maravilhosa arquitetura das catedrais góticas só foi viabilizada por antigos pecados: muitos dos quais inteiramente impublicáveis. Apesar do absurdo, é somente um dos diversos paradoxos da história da Humanidade.

Outro intrigante paradoxo foi observado nesta Copa do Mundo: a disposição do técnico Maradona em ficar nu defronte do obelisco de Buenos Aires no caso da Argentina vencer a Copa. A natureza da comemoração era paradoxal e desconcertante, longe de ser uma celebração festiva a inusitada promessa parecia um ato de autoflagelação. Tendo transitado entre a ‘mão de Deus’ e a ‘erva do Diabo’ pode-se imaginar o recalque de um passado duvidoso ou a necessidade de uma justa penitência. Perplexos, pelo bizarro da proposta, ficamos com a desagradável expectativa de Dom Diego cumprir a promessa. O fato nos atormentou silenciosamente como uma ameaça com requintes do macabro e a tradicional rivalidade Brasil X Argentina assumiu contornos jamais imaginados. A despeito da vitória argentina teríamos ainda a insólita nudez de Maradona. “Seria um efeito colateral das drogas ou somente mais uma bravata argentina?”: era a indagação geral.    

Nessa Copa, o velho clichê do futebol ser “uma caixinha de surpresas” foi reafirmado de forma notável, e coube a Alemanha cumprir o ritual. Ironicamente a maior nação luterana, (totalmente na contramão de sua tradição religiosa), vende indulgências livrando “El Pibe” da humilhante penitência, poupando o mundo de uma visão dantesca. E não vendeu barato, foram quatro indulgências sendo a primeira logo aos três minutos de jogo. A Argentina – surpreendida pelo blitzkrieg teutônico – mais uma vez nos brindou com o prazer de sua derrota além da saborosa constatação que o ‘fenômeno’ Messi (o melhor do mundo...?) não fez um gol sequer em todo o torneio. Foi a cereja do pudim. Estávamos saudosos, afinal o último brinde foi o 3 X 1 nas eliminatórias. Com instinto de assassinos, esboçando uma vingativa gozação, “los hermanos” foram rapidamente emudecidos pelo ataque alemão. A nota triste é que todos os gols foram absolutamente legais. Uma pena! Poderia ter havido um de impedimento e outro com a mão, mas isso... isso seria abusar demais do perdão divino.  

E falando em perdão, vale salientar os imperdoáveis em nossa seleção. Sem dúvida, Dunga e Felipe Melo por aclamação popular. Esses sim deveriam ficar nus no obelisco. O Dunga no obelisco da avenida Rio Branco e Felipe Melo no de Ipanema ou o contrário. O sensato talvez fosse um plebiscito popular para decidir o impasse. Em ano eleitoral a decisão mais adequada. Com a utilização de nossas formidáveis urnas eletrônicas seria a verdadeira democracia em seu pleno exercício. Haverá debates em mesas redondas de futebol onde todos farão questão de expor suas escolhas em minúcias e discussões inflamadas ao tom de posições radicais e pontos de vista apaixonados. A Associação de Moradores de Ipanema possivelmente irá propor que ambos se desnudem no largo do ‘Bar Vinte’ para logo depois demolir o obelisco em um verdadeiro rito de exorcismo.

Mas, na falta do esperado duelo Brasil X Argentina, o torneio perde a emoção tão aguardada e só nos resta botar as Vuvuzuelas no saco e aguardar. Aguardar o próximo carnaval, quando as malditas cornetas voltarão a atazanar. Que ninguém se iluda, as Vuvuzuelas (o grande legado da copa) vieram para ficar. Os blocos de rua, achando pouco urinar por toda cidade, virão soprando a plenos pulmões as malfadadas Vuvuzuelas em um clima infernal e dessa vez... sem perdão nem indulgências.

Richard

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