O Inquietante

Não que fosse propriamente feia... Jandira era cubista – com nariz meio de lado e olhos marcantes (um de cada cor) emoldurados em um rosto digno de Picasso. Justamente essa ‘garota’, arranjada pelo Rodrigo, seria a minha companhia naquela noite. O velho amigo necessitava esse pequeno favor. Susana, a sua nova paquera, não queria sair a sós insistindo em levar uma amiga. Iríamos ao teatro e a um show na Lapa: em princípio, mais um típico programa de fim de semana.   

A primeira vista percebi que ‘garota’ foi força de expressão do Rodrigo. Tinha certa kilometragem, e como se não bastasse... socióloga. Passado o susto inicial, partimos para o teatro e a esticada na Lapa. Tudo sem lamentações, afinal, Jandira era a melhor amiga da Susana – a garota do Rodrigo. Essa sim! Mulher pra ninguém botar defeito, perfeita nos detalhes: uma escultura viva de Michelangelo. Solidário com o amigo eu havia feito o favor, no entanto se soubesse de antemão teria me esquivado com a elegância própria dos hipócritas. O Rodrigo me devia essa.

Logo de entrada uma peça surrealista de Ionesco (muito adequada ao contexto) e como prato principal, o show do Leo João: o pagodeiro do momento. O seu samba “Vida Barata” bombava nas paradas de sucesso e o Leo, com pagodes e histórias hilariantes, fazia um espetáculo e tanto. Foi quando, estimulado pelo o som e a animação do sambista, resolvi arriscar uma conversa com Jandira e, com surpresa, noto em Jandira uma pessoa afável e um ótimo papo. Menos mal... a boa conversa prometia, no mínimo, uma noite agradável.
   
De repente... o imprevisto! As mulheres foram ao banheiro e, aproveitando a ocasião, Rodrigo propõe um enredo alternativo.
 - Cara, eu tava pensando aqui... O show tá terminando e a gente bem que podia dar uma passadinha num motel aqui perto. Pensa bem! ...um finalzinho maneiro... Hein!!!
- Mas Rodrigo... eu mal conheço essa Jandira e alem do mais...
- Que isso cara! Já vi que ela tá paradona na tua. Super afim... vai por mim.
- O problema não é esse. A questão é eu estar paradão na dela... num estou nessa fissura.
- Pô, qual é...?! num tou te conhecendo... tá parecendo viado?   
- Sabe Rodrigo... a Susana é o maior brotinho, e a Jandira... sinceramente, não faz o meu tipo.
- Vou te dar um conselho numa boa. Apaga a luz, porque a noite todos os gatos são pardos... e manda ver, cara! Tenho certeza que vai achar legal.
Com as moças retornando à mesa, a conversa morreu no ato. Rodrigo e Susana voltam aos beijos e abraços lascivos, enquanto eu mantinha uma conversa tímida com Jandira. Tímida, mas agradável. 

Terminado o show fomos todos no carro do Rodrigo. Resoluto, e já de caso pensado com Susana, tomou o caminho do ‘Motel Pica-pau’, ali mesmo na Lapa. Na porta um sugestivo letreiro, em neon explícito, acendia e apagava alternadamente – MOTEL / PICA / PAU – não deixando dúvidas quanto a sua integridade. Ao chegar à portaria o grupo esboça reações divergentes. Os dois enamorados estavam encantados, eu...? em total descompasso com meu ser e a Jandira calma e serena. Vestia um ar descontraído como se fora o trivial. E o jogo mal tinha começado. Ocorreu-me, naquele instante, o pressentimento de uma trama com desfecho previamente orquestrado. Sem saída e com a imposição das circunstâncias, tive a necessidade de quebrar o gelo e ousar um beijo – somente um beijinho. Naturalmente, com alguma dificuldade em ser espontâneo, mas... o que fazer...? A sorte estava lançada e não havia retorno possível.

Seguindo o conselho, apaguei a luz do quarto para enfrentar Jandira com elegância e naturalidade. No inicio foram apenas afagos um pouco ousados, seguidos de beijos mais ardentes antevendo surpresas ainda por vir. No escuro, fui envolto pela voz sedutora sentindo uma maciez em sua pele capaz de levar as alturas um velho libertino. Sentia-me cada vez mais arrebatado por aquela mulher de um fascínio inexplicável. O seu ronronar sensual me deixou alucinado. Amorosa por natureza e devassa por vocação, parte para o sexo selvagem em posições tão exóticas quanto originais, me forçando a mover músculos jamais utilizados. O seu carinho equivalia a Viagra em dose tripla e decididamente fiquei desconcertado. Foi o prelúdio de uma paixão! Jandira dominava a arte de amar.

Após o inusitado êxtase de amor carnal acendo a luz de cabeceira. Fitando Jandira, descubro então o seu encanto... parecia uma Madona de Da Vinci. Como podemos nos enganar em uma primeira impressão? – pensava intrigado. Será que os homens só pensam com o pênis, como afirmam as mulheres? Com o espírito assediado por essas reflexões acendi um cigarro.

Entre conjecturas e tragadas liguei o radio. Tocava “Vida Barata” de Leo João e a coincidência me conduziu a uma questão inquietante: Teria sido somente o sucesso do momento... ou a magia do inesperado?

Richard

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