Não sei o que me mantém neste estado. Não sei se foi a visão do Raul trancado fora da casa durante a tempestade, ou se foi segui-lo até a praia. Há quarenta dias vivo dos cuidados alheios, vegetando, paralisada.
Pobre Raul. Sem aviso, sem nenhuma possibilidade de previsão, a vida lhe apresentou o inferno. Raramente se queixava. A dor permanente já era parte de seu dia somente variando na intensidade. Quando sua cabeça estava para estourar, ele saia. Buscava na rua, no ar puro, na escuridão da noite, uma trégua que os remédios já não proporcionavam.
Eu sofria, como sofreria qualquer um, vendo a mente de Raul se desarrumar. Tinha visões, dizia coisas desconexas. Sua cor preferida, azul, estava alucinadamente presente em tudo. Dizia azul a escuridão da noite, o verde das arvores, e até meus olhos castanhos, velhos conhecidos de mais de quarenta anos, azuis...
No inicio eu o corrigia:
- O quarto de nossa filha é rosa, até hoje. Não é azul, meu querido.
Isabela já não morava conosco, mas seu quarto ficara intocado – rosa. Raul, o via azul...
Aos poucos meu estranhamento cessou. O doutor informou que distúrbios de comportamento ocorreriam. Tudo iria se agravar. Sabe como é... A realidade vem – nos atropela. Vem a revolta, e, de mansinho, vem a aceitação. Aceitação do azul, um azul irreal, que junto com a dor, passou a reger as nossas vidas.
Naquela noite, quando o olhei pela janela, a chuva e o vento batiam em seu corpo. Tinha os braços montados sobre a cabeça como querendo protegê-la. Desci as escadas, e fui ao seu encontro procurando aliviar seu desespero. Raul me apertou contra seu peito molhado. Ficamos em silencio, na chuva, ao vento. Uma estranha sensação de encontro final. Não haveria mais nada que eu pudesse fazer a não ser ajudá-lo na caminhada.
Entramos, e eu providenciei roupas e uma bebida quente. Por um momento ele me pareceu calmo e sem as contrações que as dores lhe causavam. Colocou o meu rosto entre as suas mãos e disse:
- Eu vou.
- Agora?
- Chegou a hora.
- Mas...
- Já conversamos.
Permaneci imóvel enquanto Raul foi ao quarto e voltou com uma mochila vazia presa as costas.
- Por favor, fica mais um pouco. Eu te peço.
- Passei do meu limite. Já conversamos. Me ajude.
- Eu te amo
- Então me ajude.
A claridade da manhã já era suficiente para mostrar a rua esburacada que o levaria até ao mar. Nos abraçamos. Lentamente Raul se desvencilhou de meus braços, me beijou e saiu caminhando com dificuldade. Então havia feito a escolha. Caminhava para o imenso azul do mar.
Instintivamente comecei a segui-lo à distancia para que não me percebesse. Quebrei uma jura, perdi o controle. Um turbilhão de recordações, pensamentos e uma angustia infinita, me acompanhou naquela insólita caminhada.
- Quase morri sem ver o mar – disse
- Querido, você não vai morrer. A operação foi um sucesso. Eles tiraram o tumor - seu cérebro não está comprometido.
- E a biopsia?
- Dez dias.
Quando pisou na areia seu corpo estava vergado com o peso da mochila às costas, agora cheia de pedras catadas a esmo. Sem alterar o passo vacilante, entrou na água. Seguiu seu caminho com crescente dificuldade e determinação. Foi seu último encontro com o amado mar azul.
Vi quando a pequena onda lhe cobriu a cabeça para sempre. Vaguei pela rua ainda deserta. Eu não podia ter aceitado este trato, eu não poderia ter permitido... Não tenho coragem de voltar para casa. Vou ficando neste albergue até que me expulsem. As pessoas são amáveis. É um albergue azul, um azul fechado, marinho.
Paulo
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