Livros versus livrarias

Tomei a pergunta com a inocência de quem está prestes (ou pensa que está) a saborear um prazer.
- Este livro é da livraria? – indagou a atendente do café da loja de livros.
- Sim! – respondi com ares de satisfação, de alguém que é pego fazendo o bem.
- Não pode! – a garçonete rapidamente sentenciou – aqui não pode!
Tentando entender a situação, logo consertei a resposta:
- Este livro foi da livraria, acabei de comprá-lo. Então, tecnicamente, é meu! Meu pode?
A atendente, meio sem jeito, disse:
- Da livraria não pode – afirmou, justamente como diria um trabalhador destreinado em tempos de discursos de exigência de empregadores por profissionais preparados para o mercado de trabalho competitivo.
- Então pode, pois agora não é da livraria, é meu – respondi sorrindo, balançando o cupom fiscal e a via do cartão de crédito relacionados com minha mais recente aquisição literária.
Estupefato, tentei continuar meu gozo, pedindo meu prato favorito naquele café de livraria, tendo sido informado que tinha, mas acabou. Troquei por outro, que se mostrou indecentemente sem graça. Ou, de repente, a graça tinha acabado justo quando fiquei sabendo que, na livraria, não se poderia ler livros. Fiquei pensando no paradoxo estampado em cores vivas e letras garrafais: na livraria pode-se tomar café, pode-se comer, mas não se pode ler livros. Os serviçais (palavra com atitude preconceituosa, mas plenamente apropriada a quem presta serviços) estão prontos, em questão de segundos, a impedir alguém de ler livros dentro da livraria. Ponderei comigo mesmo se a presença de um café dentro de uma livraria não seria somente para dar um "status" intelectualizado ao negócio. "Façamos de conta que somos intelectuais, afinal, estamos em uma livraria, mesmo que não se possa degustar um livro". Que se deguste o cachorro-quente com mostarda e "catchup" estilizados! Já não basta o visual dos livros nas estantes para te mostrar como uma pessoa culta?
Certo, pode-se pensar que os donos do empreendimento estão a cuidar do sue patrimônio que são os livros, impedindo-os de se sujarem ao serem manuseados por humanos que, além de sedentos por cultura, estariam esfomeados da mais mundana comida.
Após a leitura agradável, o vinho satisfatório e a comida sem sabor, constatei, meio constrangido, que meu mais novo livro (a única razão do impasse inicial da noite) tinha sido tingido coloridamente pelos molhos vermelho e amarelo do meu "hot dog" afrescalhado. Por um segundo pensei que os livreiros tinham razão da proibição, de início por mim tida como absurda.
Porém, após um segundo de reflexão, já inebriado pelo descobrimento da magia das crônicas, ou, sei lá, pelo vinho argentino que beirava a desonestidade (ou a isso somado), pensei com o cadarço de meu calção esportivo (na falta de botões, pois voltava da academia): a regra do livreiro seria que quem sujasse o livro deveria levá-lo para casa. Mais ainda, teria que lê-lo! Assim, com o hábito, quem sabe, um dia as livrarias voltariam a ser lugares de leitores, não apenas pontos de encontro com ares de sofisticação para a satisfação de umas das mais vis e inescapáveis necessidades humanas: a de comer e beber. Saúde!
Rodrigo de Lacerda Carelli

3 comentários:

  1. Muito bom. Mas não se esqueça que as livrarias também servem para mais uma das vis necessidades humanas: a de ver e ser visto. Talvez para isto que estejam se prestando, as livrarias, neste mundo de consumo e de imagens. Talvez tenha mais prazer comprando-se pela internet, enquando saboreia uma taça honesta...

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  2. parece-me que sua voz esta em cada palavra escrita,gostei!

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