O Cavalo Nu

A aparente previsibilidade de um caminho que repetimos todos os dias durante anos é o que existe de traiçoeiro no banal. Porque nos compromete a percepção e nos vicia o olhar. Instantes cotidianos tornam-se invisíveis. Por vezes, é preciso um congestionamento fora de hora para nos forçar uma virada de rosto e a indagação, "Que casinha bonita! Ela sempre esteve aí?". Ou então algum tipo de acaso insólito.


O Alto da Boa Vista é meu itinerário de sempre. Sua maior virtude é pintar de verde as preocupações e os aborrecimentos profissionais. O restolho de mata atlântica debruçado em suas encostas, assanhando-se para os veículos, parece esticar seus galhos a fim de querer nos abraçar, pegar carona conosco, tal a opulência da vegetação diante do acanhamento da estradinha. E a despeito dessa mata fechada sugerir às mentes mais inventivas o esconderijo de duendes, fadas ou mesmo bosques encantados, um cavalo passeando a ermo no meio-fio ameaça todo o ecossistema do nosso senso comum.


Eu, que não fui criado em fazenda, não estou acostumado a ver um cavalo nu, sobretudo no asfalto. Entende-se sobre cavalo nu o cavalo sem sela, arreio e apetrechos do tipo, pois gente como eu, sem qualquer história bucólica de uma infância rural para contar, acaba tendo a impressão que os cavalos já nasceram com aquelas coisas todas. Quando surgem assim tão sem nada perto de nós parece pintura. Pois o cavalo nu passou trotando lentamente ao lado do meu carro, como um transeunte comum. Tudo bem que se estivesse vestido seria tão estranho quanto, mas sua nudez dava uma áurea mística à cena. Algo como um sonho. E a única prova de que não era, de fato, um sonho foi eu não ter me preocupado em apostar no número onze do jogo do bicho naquela mesma manhã. Ficou a imagem onírica, que o diretor de cinema sentado dentro da minha cabeça teima rodar em câmera lenta sempre que repetida.


O cavalo nu descia o Alto sem pressa. Atrás dele não corria nenhum vaqueiro desesperado ou domador em início de carreira. Nenhum cavaleiro inexistente. Nenhuma carroça esquecida no meio do caminho. Estaria indo ao trabalho sozinho? Tive vontade de saltar do carro e correr para lhe explicar que aquele não era o melhor caminho até o jóquei. Mas estava tão senhor de si que, obviamente, sabia o que estava fazendo. Eu é que não. Ignorante, mudo, me senti eu o bicho. E, sem dúvida, sua altivez e liberdade naquela hora do dia o tornavam mais gente do que qualquer um de nós, animais de carga cumpridores de expediente.


Ao longo do dia, a figura heráldica do cavalo nu permaneceu comigo. Me perdia em questionamentos a respeito do seu paradeiro, seu nome, seus afazeres, embora nada disso fosse importante. Tampouco importava se o encontraria de novo ou não. Com o juízo de um Don Quixote, eu já estava inevitavelmente montado na maior das perguntas: quantos cavalos nus eu deixei de ver ao longo da vida?

Leonardo João

2 comentários:

  1. Muito, muito interessante! E desperta em todos os leitores a mesma dúvida... quantos cavalos nus deixamos de perceber em nosso cotidiano?
    Como restringimos nossos sentidos!

    Parabéns!!!

    Abçs!

    ResponderExcluir
  2. Também gostei do que li.
    Meu sonho é ter uma fazenda, criar cavalos, aquela coisa bem bucólica, sair da cidade grande um pouco iria me fazer muito bem, rs.
    Você deve passar por estes lugares e dentro do carro, visualizar uma forma de escrever o que viu. E colocar no papel aquilo que sente e vê é muito gostoso.
    beijo.

    ResponderExcluir