Quase morri sem ver o mar

Afasto as cortinas antiquadas. O meu olhar avança indiscreto. Salpicam janelas em todo o horizonte, que se arrasta num pôr-do-sol intruso de solidões, como se o desamparo do limbo tivesse dado morada à paixão. Minha mãe, envolta em décadas e franqueada de marcas alheias aos cinquenta e tantos anos que compartilhamos (amores que eu não soube, dores que eu não vi), se rebate, poucos metros adiante, com a morte. Não há véu que cubra o momento nem cantiga que perfaça o silêncio. Somos apenas nós quatro, eu, ela, a fria São Paulo de julho e o iminente alcance do fim. “Quando não há esperança é que o mundo começa”, lembro de ter lido, não sei se num muro, não sei se num livro, não sei se no muro de um livro. Não há esperança. Nada vai começar. O que reverbera, acalentado pelos espaços nada serenos do câncer que corrói minha parideira, são gemidos crus. Quase muda, ela me chama ao pé da cama. “Ana”, diz, “sabe o que me alenta?”. Eu, dor de filha a não mais poder e nada mais a que chorar, respondo que não, não sei (não fomos, eu e minha mãe, de compartilhar quinquilharias de afeto. Antes, fomos duras, impenetráveis, como devem ser as mulheres abandonadas - que se reproduzem como moscas na minha história: primeiro minha avó, depois ela, depois eu, em breve a minha filha). “O que me alenta, Ana, foi ter passado a lua-de-mel em Santos, antes do teu pai ir, antes de você vir”. Eu não sei se sorrio com a lembrança indiscreta, a imagem dos bigodes do pai que não conheci, ou se afundo na profusão de sons da ausência. Acendo um cigarro. Ela urra. Mais uma vez ensaia meu nome, segura meu braço direito com força minguada, roça a ponta dos dedos amarelados na minha mão: “Ana, eu quase morri sem ver o mar”. E fecha os olhos pela última vez.

Giovana

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